No último dia 20 de março, o site do
jornal Folha de São Paulo publicou uma reportagem intitulada “Nota 1.000” na qual aborda
o diferencial dos candidatos ao Enem 2015 que obtiveram pontuação máxima na
proposta de redação cujo tema foi “A persistência da violência contra a
mulher na sociedade brasileira”. Para as repórteres, criatividade,
engajamento, informação e repertório cultural foram os principais aspectos das
dissertações-argumentativas que alcançaram 1.000 pontos.
A reportagem citada, além de gráficos
sobre o Enem 2015, traz aos leitores alguns exemplos de redações que obtiveram
notas máximas, além de um pequeno resumo acerca de seus autores, estudantes
brasileiros que, com essa pontuação, conquistaram vagas em universidades
públicas brasileiras.
Neste contexto, na publicação de hoje,
analisaremos uma dessas redações exemplares; por meio de comentários, almejamos
verificar como e porque tais textos foram dignos de 1.000 pontos no Enem 2015.
A redação que iremos analisar é de
autoria da estudante paulista Amanda Della Togna Torres, de 17 anos.
Reprodução da
coletânea de Textos Enem 2015. Fonte: Inep.
Desconstruindo
ideologias: sob a égide da democracia
O preconceito
contra o sexo feminino é um problema que assola o cotidiano pós-moderno,
sendo inúmeras as formas por meio das quais tal discriminação se apresenta.
Seja por meio da violência física, psicológica, sexual ou patrimonial, as
mulheres têm sofrido nas mãos de agressores que veem no sexo feminino um
elemento “frágil”, ideologia que é a completa antítese das democracias
contemporâneas, supostamente liberais e igualitárias. Nesse contexto, deve-se
discutir a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira.
Desde os primórdios
da civilização, foi criado um estereótipo que reservava às mulheres apenas as
funções domésticas e de procriação, excluindo a possibilidade de seu ingresso
nas esferas da política ou mesmo do trabalho. Todavia, tal estereótipo vem
sendo desconstruído, ao passo que as mulheres conquistam mais espaço nas
relações sociais, políticas e econômicas ao redor do mundo. Toma-se como
exemplo as lideranças políticas alemã, argentina e, principalmente,
brasileira: hoje, tais cargos são exercidos por mulheres, realidade
improvável há algumas décadas.
Todavia, ideologias
preconceituosas e agressivas ainda são inerentes à sociedade brasileira,
constituindo um entrave ao progresso da nação como um todo. Este quadro se
torna evidente ao serem apresentados dados disponibilizados no site da
revista “Istoé”: no período de setembro de 2006 a março de 2011, mais de 330
mil processos com base na Lei Maria da Penha foram instaurados nos juizados e
varas especializados. É no mínimo incoerente que, em pleno século XXI, junto
a um cenário pautado pelas ideias de igualdade e liberdade como base
fundamental de toda e qualquer democracia, ainda existam milhares de mulheres
sofrendo por agressões de natureza absolutamente injustificável.
Assim, é imprescindível
que medidas sejam tomadas para a compleição de uma democracia justa e
igualitária em sua plenitude. Desse modo, cabe ao Governo tornar mais rígida
a legislação concernente ao bem-estar do sexo feminino, tomando as devidas
providências quando algo estiver em desacordo com o que prega a Lei; às
escolas, cabe o dever de instruir as gerações futuras quanto à igualdade
entre os cidadãos de uma democracia, conscientizando-os do caráter absurdo
presente em atos discriminatórios e agressivos. Por fim, lança-se um apelo às
vítimas, ressaltando-se que a denúncia é a forma mais eficiente de se
combater o problema. Afinal, à guisa de Simone de Beauvoir, o opressor não
seria tão forte se não encontrasse cúmplices entre os próprios oprimidos.
O título é
uma marca opcional nas dissertações-argumentativas das provas de redação do
Enem, mas o título da redação da Amanda Della Togna Torre chama muito
a atenção do leitor, pois afirma, diretamente, que é preciso desconstruir
ideologias no contexto da proteção da democracia, já que a palavra ‘égide’,
de origem grega, significa “proteção, amparo”.
A introdução,
por sua vez, cumpre adequadamente seu papel: apresentar o tema ao leitor e já
mostrar a ele a tese principal que, neste caso, afirma que o preconceito
contra o sexo feminino, na pós-modernidade, é contraditório, já que vivemos
em uma democracia que é, supostamente, igualitária e libertária e, por isso,
a persistência da violência contra a mulher deve ser discutida na sociedade
brasileira.
A candidata utiliza
a palavra ‘sexo’ para referir-se às mulheres e, deste modo, refere-se,
somente, ao sexo biológico e não à identidade de gênero, isto é, como nos
vemos e como nos mostramos ao mundo. Assim, Amanda faz referência apenas às
mulheres em termos biológicos e deixa de lado, propositalmente ou não, às
mulheres transgêneros, por exemplo.
Aliás, a questão de
múltipla escolha do primeiro dia do Enem 2015 que trazia uma citação de
Simone de Beauvoir referia-se mais à identidade de gênero do que ao sexo
biológico, isto é, o sexo com o qual nascemo: masculino ou feminino.
Além disso, a
candidata, já na introdução, lista os tipos de agressão sofridas pelas
mulheres: física, psicológica, sexual, patrimonial e podemos incluir, aqui,
mais uma: a financeira, quando o parceiro controla, de maneira obsessiva, as
finanças da companheira.
Já no segundo
parágrafo, o primeiro do desenvolvimento, Amanda retoma o esteriótipo da
mulher que servia apenas para fazer os afazeres domésticos e para procriar,
estando embutida aí a questão de que as relações sexuais, para as mulheres,
não poderiam ser prazerosas como são para os homens. Ou seja, sempre tivemos
o papel da dona de casa e da reprodutora, mas isso mudou, como bem lembra a
candidata, já que as mulheres, a cada dia que passa, assumem mais cargos
políticos e profissionais e ela cita como exemplos mulheres que ocupam altos
cargos na política do Brasil, da Alemanha e da Argentina (hoje já não mais,
mas naquela época, sim), podendo ser substituída pelo Chile.
No terceiro
parágrafo, o segundo do desenvolvimento, a candidata tem como intenção
combater o que chama de preconceito incoerente com o progresso do país e
parafraseia, ou seja, escreve com as suas palavras, um dado retirado da
coletânea de textos motivadores. Assim, ela recorre à coletânea de modo
adequado, útil ao seu texto, e correto, já que a cópia integral é proibida
pelo Enem. Outra coisa que ela evitou escrevendo desta maneira foi pressupor
que o leitor conhecesse o dado informado, já que ela citou a fonte (revista
Istoé) e o período ao qual a estatística diz respeito.
De acordo com
Amanda, é incoerente que violências injustificáveis contra a mulher ainda
existam em um país que se diz democrático e que tem como ideais a igualdade e
a liberdade, bandeiras também do movimento feminista. Observem que, usando
adjetivos como ‘incoerente’ e ‘injustificável’, a candidata já assinala a sua
opinião acerca da persistência da violência contra a mulher no Brasil.
Por fim, na conclusão,
a autora estabelece que governo, escolas e mulheres têm tarefas a cumprir a
fim de vivermos, realmente, numa democracia igualitária e libertária. Ao
governo, cabe tornar a legislação mais rígida; às escolas, cabe à
conscientização dos alunos a fim de gerarmos futuros cidadãos adultos
conscientes e às mulheres, finalmente, cabe denunciar mais os seus agressores
e, para embasar sua proposta de intervenção social, a candidata parafraseia,
agora, Simone de Beauvoir: “o opressor não seria tão forte se não encontrasse
cúmplices entre os próprios oprimidos”.
Alguém pode pensar
que há machismo nesta oração, colocando a mulher oprimida como cúmplice, mas
pensamos que não foi o objetivo do texto. O real objetivo seria conscientizar
as mulheres da importância da denúncia, pois sabemos que, infelizmente,
muitas não denunciam seus agressores pelos mais diversos motivos.
Esperamos que
tenham gostado da análise. Até a próxima!
*CAMILA DALLA POZZA
PEREIRA é graduada e mestranda em Letras/Português pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da Educação exercendo funções
relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Foi
corretora de redação em importantes universidades públicas. Além disso,
também participou de avaliações e produções de vários materiais didáticos,
inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação (MEC).
|
Posted: 31 Mar 2016 11:39 AM PDT
https://www.infoenem.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário